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Ucrânia: Analista discute a atual situação no país e o que está por trás da mais recente crise

O entrevistado da semana foi o analista e consultor em política e negócios internacionais, Paulo Roberto de Macedo Soares. Seus trabalhos tem como foco o mundo árabe e também o Leste Europeu, e foi exatamente sobre isso que recorremos ao pesquisador para falar sobre a pior e mais recente crise na Ucrânia, da qual o mundo volta os olhos agora após uma movimentação fora do comum de tropas ocidentais e estadunienses em países vizinhos, em uma clara tentativa de provocação as tropas russas concentradas na região.


1) A Ucrânia é um país que vem sofrendo com uma crise social, política e econômica já a bastante tempo. Atualmente, o que está sendo passado na mídia é somente a ponta do Iceberg do que realmente existe naquela região e incomoda os dois povos (russos e ucranianos). O que está por trás dessas crises que assola o leste europeu e queria pedir para você, como analista no assunto, uma abordagem detalhada do que fez a Ucrânia virar esse corredor de passagem para um possível conflito em pleno século XXI?


- A crise na Ucrânia começou em novembro de 2013 quando o presidente Viktor Yanukovich desistiu de assinar um acordo de livre-comércio e associação política com a União Européia (UE), e então o ocidente - entenda-se os EUA e a própria UE - passaram a endossar e possivelmente organizar, através de fundações e ONGs, ações de opositores, dentre os quais muitos grupos neonazistas, que são profundamente antirussos.

A pressão ocidental sobre o governo ucraniano por um lado procurava uma aproximação econômica e política com a UE, e por outro uma aproximação militar com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Já no início de 2014, os protestos tornaram-se extremamente violentos e houve mortes. Em Odessa, inocentes foram mortos por criminosos que incendiaram a Casa dos Sindicatos e atacaram aqueles que tentaram fugir das chamas; essa e outras atrocidades foram cometidas por grupos pró-ocidentais, e não raro avistaram-se bandeiras nazistas. O governo foi derrubado e um outro abertamente pró-ocidental e anti-Rússia instalou-se em Kiev; com isso, a República Autônoma da Criméia, valendo-se de prerrogativas constitucionais, votou em seu parlamento uma proposta para a saída da República da Ucrânia e, após isso, votou e aprovou um pedido formal de ingresso na Federação da Rússia, o que foi aceito pelo parlamento russo.

A Criméia pertencia à República Russa dentro da União Soviética, e foi transferida para a República Ucraniana em 1954 por uma reforma administrativa do então primeiro-ministro Nikita Khrushchov; à época isso não causou nenhum problema porque tanto a Ucrânia quanto a Rússia eram parte do mesmo país.

Assim, a crise não surgiu por um impasse com Rússia e aliados da Europa ocidental, mas sim a partir da pressão e intervenção estrangeira que legitimou a violência como meio político e fechou os olhos para a natureza fascista de grupos que aproveitaram a crise para materializar sua violência. Com todo esse caos em que o país mergulhou a partir do início de 2014, as regiões de Donetsk e Lugansk, no leste do país, não reconheceram a legitimidade do governo de Kiev, e declararam-se independentes. Essas regiões não solicitaram seu ingresso na Federação Russa, e nem a Rússia demonstrou interesse nisso; a posição russa é a de preocupação com a segurança e o bem estar dessas populações, que são majoritariamente russas e falam majoritariamente o russo como primeira língua.

É importante salientar que russos e ucranianos são povos irmãos, com uma história compartilhada e imensa proximidade cultural; essa cisão que se apresenta nem sequer é representativa do pensamento da maioria das pessoas comuns. A Ucrânia é uma ex-república soviética que tem uma história em comum com a Rússia desde a formação do estado que é ancestral comum da Rússia, Ucrânia e Belarus, a Rus' Kieviana que remonta ao século IX.


O país era um ponto chave para o projeto de União Eurasiática da Rússia que complementaria o projeto das Novas Rotas da Seda proposta pela China. Além disso pela Ucrânia passam aqueles que eram os principais gasodutos de abastecimento da Europa. Minha impressão é que os EUA e seus aliados da Otan trabalharam pela desestabilização da Ucrânia, de modo a inviabilizar o plano russo de integração econômica.


A escalada do discurso nessa região está sendo acompanhada pelo destacamento de tropas da Otan para países fronteiriços com a Rússia, ao que os russos respondem movimentando suas tropas dentro das próprias fronteiras. Nos últimos dias, tanto o presidente francês, Emmanuel Macron, quanto o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, têm pedido calma e ponderado as acusações estadunidenses contra a Rússia.


Em minha opinião, o governo estadunidense está usando a Rússia como um espantalho para tirar o foco de seus próprios problemas internos e externos, porque internamente sua administração não está sendo capaz de lidar com os problemas que o país tem acumulado nos últimos anos e externamente sua gestão está sendo marcada por uma sucessão de derrapadas que colocam seus aliados da Otan em situações embaraçosas com suas próprias populações - vide por exemplo o modo como o governo dos EUA negociou com o taliban sua retirada do Afeganistão sem consultar seus parceiros e o modo como Washington tirou da França um contrato de 66 bilhões de dólares na venda de submarinos à Austrália. Podemos dizer que esse é o modus operandi do governo dos americanos, que busca ciclicamente apontar um inimigo à paz mundial e então manobra seus aliados para assim poder manter sua predominância e justificar a presença militar ao redor do globo e a ocupação de diversos países.



2) Recentemente o foco do conflito vem sendo o lado leste da Ucrânia, uma área predominantemente russa e onde se encontram separatistas Pró Kremlin, opositores ucranianos e o exército, que se combatem incessantemente dia após dia em uma tentativa de assumirem de vez o controle da região. É possível uma interferência ainda maior tanto da Rússia quanto dos EUA naquela região, e é certo dizer que uma guerra civil se aproxima?


- A guerra civil já se instalou há oito anos, quando o governo foi derrubado sob coordenação de forças de extrema-direita e essas regiões não reconheceram o novo governo e declararam independência. Uma interferência direta da Rússia, ao meu ver, só aconteceria se o ocidente, sejam os EUA ou a OTAN, avançar sobre o país, colocando em risco os cidadãos russos e o próprio território russo.


Acho que nenhum centro de poder quer a guerra - a despeito de que alguns setores em diversos países possam até querê-la - mas o discurso da guerra interessa a todas as capitais: Washington apresenta a tradicional ameaça do leste para mascarar as derrapadas recentes, especialmente no Afeganistão, e tentar se recolocar em uma posição de liderança moral que foi corroída durante o governo Trump; nas capitais européias, os grupos atlantistas usam essa histeria como argumento da necessidade da permanência na OTAN, especialmente no caso da França que foi recentemente prejudicada no caso da compra de submarinos pela Austrália, o caso do primeiro-ministro inglês, Boris Johnson, que precisa de uma cortina de fumaça bem grande para ocultar suas farras durante a pandemia, e no caso de vários governos de extrema-direita do leste europeu que precisam do peso ocidental para se firmarem. Mesmo Moscou se beneficia de alguma maneira com essa retórica belicosa, pois isso ajuda a elevar a popularidade do governo, apresentado como defensor dos russos ante a ameaça ocidental. Ao comparar o que acontece na prática, com os EUA e a OTAN enviando tropas e equipamento para países fronteiriços com a Rússia e os russos movimentando efetivos dentro das próprias fronteiras, fica bastante evidente que a população russa tem muito mais motivo para temer uma agressão do que os estadunidenses.




3) A Ucrânia tem um exército tão forte quanto o dos tempos soviéticos para uma possível defesa? De onde vem parte do material bélico que o exército ucraniano vem adquirindo dia após dia para proteger suas fronteiras? O país possui mísseis nucleares?


- A Ucrânia tem uma força militar considerável, que ocupa a quinta ou sexta posição no quadro europeu, em termos de armamento convencional e não possui arsenal nuclear. Em termos organizativos e de treinamento, a herança soviética garante uma grande capacidade de ação. Assim como a maioria das ex-repúblicas soviéticas, a maior parte de seu equipamento é soviético ou desenvolvido a partir de tecnologias soviéticas, o que significa uma excelente qualidade.

A Ucrânia recebeu ajuda militar e equipamento estadunidense nos últimos anos.

Ou seja, é um país bem armado que tem como se defender e mesmo para uma grande potência militar como a Rússia, um conflito não seria simples nem barato. Aliás, esse conflito não seria barato para nenhum dos envolvidos, em quaisquer termos, inclusive para a OTAN. Isso reforça a minha opinião de que a guerra não é desejada por nenhuma das partes; ninguém ganharia muito mesmo com uma vitória militar clara, e de qualquer modo a Ucrânia estaria arrasada ao fim do conflito; se a OTAN ganhasse, seria uma vitória de Pirro, e se a Rússia ganhasse, seria às custas da morte de seus próprios irmãos. Além disso tudo, trata-se de uma questão estratégica para a segurança nacional russa, e eu me pergunto se os governos ocidentais estariam dispostos a pagar para ver até onde as coisas iriam em uma aposta cujo prêmio não me parece valer o risco.



4) Há algumas semanas, sites do governo ucraniano foram hackeados e o país sofreu com um ataque cibernético sem precedentes. A UE acusa indiretamente os russos de terem planejado toda a situação, enquanto o governo do Kremlin nega. Já há indícios de que serviços de espionagem (tanto dos EUA, quanto da Rússia) estejam agindo na Ucrânia?


- Na minha opinião os serviços de inteligência de diversos países estão agindo na Ucrânia há muito tempo, e seria realmente estranho se não estivessem, pois este é o modo como as coisas funcionam: se um país é de interesse para outro, lá estará um serviço de inteligência. No caso ucraniano, país que era um dos principais parceiros da Rússia, que fez parte da URSS, por onde passam gasodutos importantes para a segurança energética européia, que produz uma grande quantidade de alimentos e que é pivô de um projeto estratégico russo, é dado como certo que nesse país todas as potências e todos os países da região operaram com agentes de inteligência, cada um agindo de acordo com seus interesses, e também há aqueles que querem apenas ficar bem informados sobre o que acontece. Eu não acho que o caos em que a Ucrânia mergulhou em 2014 foi apenas resultado de uma insatisfação com o governo, eles já estavam operando no país redes de inteligência, espionagem e sabotagem que tinham o objetivo de promover a desordem e impedir a realização do projeto de União Eurasiática.



Acima, o mapa da Ucrânia. Note que as regiões leste de LUHANSK e DONETSK estão bem na fronteira com a Rússia e hoje disputadas por separatistas e pró russos. A região ao sul, na Criméia já anexada, hoje pertence ao Kremlin.


5) Desde o fim da Era comunista nos países do leste europeu, foi possível notar um crescimento considerável de células neonazistas e grupos separatistas que usam a violência para desintegrar a ordem e a paz nas regiões em que se concentram, na Ucrânia também não foi e nem está sendo diferente. O que justifica o crescimento desses grupos e quem são eles?


- Os grupos neonazistas foram muito atuantes na desestabilização da Ucrânia já em 2013 e 2014. Há o caso do infame batalhão Azov, um grupo paramilitar abertamente neonazista que ganhou proeminência após os conflitos. Esses grupos são mais presentes e fortes nas regiões pró-ocidente, que é justamente o oeste do país. Em certa medida, isso reflete uma disposição política e tem relação com outra questão muito importante, que é o revisionismo histórico defendido pelos grupos nacionalistas, invariavelmente de extrema-direita. Esses grupos reclamam a memória de colaboracionistas, que apoiaram e colaboraram com os invasores nazistas, e descrevem-nos como libertadores nacionais, como se lutassem contra nazistas e contra o governo soviético ao mesmo tempo; isso é duplamente falso porque eles eram os executores de ordens das tropas ocupantes, lutaram contra seus próprios compatriotas, entregaram e chacinaram civis, militares e guerrilheiros que combatiam as forças nazi-fascistas e porque tenta deslegitimar o governo ucraniano da época.


Em toda a Europa oriental, após o fim dos governos comunistas, houve um aumento constante dos grupos de extrema-direita, muitos abertamente nazistas, que defendem uma maior aproximação com ocidente - não necessariamente a integração à UE - e propõem políticas islamofóbicas, xenófobas, antissemitas, misóginas e preconceituosas em todos os campos possíveis. Na Ucrânia, como já foi dito, esses grupos são a espinha dorsal do combate à Rússia, e, na minha opinião, servem aos interesses ocidentais, à medida em que são a maneira pela qual a força bruta pôde ser direcionada para desestabilizar o país e cingir a sociedade, mantendo as estruturas oficiais do governo em um segunda plano.


Perceba-se que nem todas as regiões cuja população é pró-Rússia declararam independência, apenas duas, Donetsk e Lugansk, mas praticamente todo o leste e o sul do país são majoritariamente pró-russos. Nas regiões pró-ocidentais, esses grupos neonazistas estão alinhados com a visão e orientação do governo, nas regiões pró-Rússia, esses grupos podem ser usados para a agressão sem que se implique diretamente o governo. E eu observo que nazistas e fascistas não são uma ameaça apenas aos russos, são uma ameaça à toda humanidade, são um ataque aberto e indiscutível à civilidade, do qual ninguém está a salvo.




6) Existe alguma solução para essa crise que vem chamando a atenção da mídia atualmente? Acredito que seja a pergunta que muita gente esteja se fazendo nesse momento em que a tensão na região só vem aumentando.


- É uma situação onde a própria Ucrânia está perdendo muito há 8 anos, infelizmente, e toda a região perde com a instabilidade, afora o problema humanitário, as vidas perdidas e os problemas econômicos e sociais que essa situação causa.


Na minha leitura, a crise começou porque o ocidente teve uma atitude agressiva contra a Rússia ao tentar afastar dois países cuja proximidade é ancestral e cujos laços econômicos são fortíssimos e essenciais. Assim, a solução da crise seria muito mais rápida e tranqüila se o ocidente recuasse, renunciasse às tentativas de incluir a Ucrânia na OTAN, inclusão que é completamente inadmissível pela perspectiva russa, e ainda retirasse os embargos ilegais colocados contra a Rússia e reduzisse o efetivo da OTAN nos países vizinhos à Rússia. O discurso ocidental coloca a Rússia como a vilã, mas se olharmos um mapa, veremos que é a OTAN quem cercou o território russo com postos militares, bases aéreas e plataformas de lançamento de mísseis; não fosse o preconceito já estabelecido contra os russos, ou se fosse o contrário - com forças anti-estadunidenses cercando os EUA - todos perceberiam essa conduta como agressiva e ameaçadora.

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